quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

E a igualdade?


Quando se fala da Lei Maria da Penha, das cotas para negros na universidade pública e na diferença do tempo de contribuição para aposentadoria entre homens e mulheres, há um argumento discordante universal que é invocar o princípio da isonomia para criticar tais normas, sendo que a base dessas normas é justamente o princípio invocado. Esclarecer esse princípio é algo urgente para facilitar o entendimento das pessoas a respeito dessas normas.

Imagem retirada daqui.
O princípio da igualdade funciona de duas formas: para determinadas coisas, como o princípio do contraditório, ampla defesa, legalidade e diversos outros, todos são iguais. Mas a igualdade material e substancial vai além, ela busca trazer uma igualdade de oportunidades, então o que acontece é que grupos que são vulneráveis por causa da cultura vigente e influência da história recebem leis próprias para tentar igualar essas oportunidades, tentar igualar a situação das pessoas na ordem fática.

"O princípio da isonomia não trata de uma igualdade formal, uma vez que igualar os desiguais dessa forma, é ignorar as pluralidades sociais que compõem um Estado Democrático de Direito e impedir a participação plena de todos os cidadãos. A igualação de grupos sociais diferentes só faz com que as diferenças fiquem mais claras e se fortaleçam."
Por que não usar apenas a interpretação da igualdade formal? Essa em que todos são iguais e pronto, acabou? Bom, por mais que ela pareça a ideal, nem sempre ela é mais efetiva e aplicável, afinal, se o objetivo desse princípio é tentar proporcionar uma igualdade entre as pessoas, se essa interpretação formal muitas vezes até fortalece ainda mais as desigualdades já existentes, a gente tem que ver isso daí, não? Pense em impostos. O tão famoso imposto de renda tem como base a capacidade contributiva de cada um. Em resumo, quem tem uma capacidade contributiva alta, tem a alíquota de 27,5% calculada em cima de sua renda, enquanto quem não tem capacidade contributiva é isento. E ainda há as variações da capacidade contributiva entre a isenção e os 27,5%. Além do mais, há outros itens que esse imposto leva em conta, como a quantidade de dependentes e afins, tudo pra tentar garantir que os desiguais sejam tratados de formas desiguais no quesito das suas desigualdades. Justo, não? Uma pessoa que recebe um salário mínimo não deve pagar o mesmo que o Eike Batista paga.

I need feminism 
Outro exemplo de igualdade material, mas fora do sistema tributário, são as leis específicas para crianças e adolescentes e também para idosos, afinal, o legislador percebeu que esses dois grupos de pessoas tem certas especifidades e vulnerabilidades, sendo assim, leis específicas tratam o caso deles melhor do que uma lei geral que ignora suas especifidades. A mesma lógica se aplica nos casos das mulheres e dos negros. É fato que uma cultura que afirma que mulheres e negros são inferiores prejudica a participação e a oferta de oportunidades iguais para essas pessoas. As leis específicas visam a efetivação de uma maior participação social dessas pessoas, uma proteção contra discriminações que prejudicam a oferta de oportunidades e a dignidade humana.

A diferença entre o tempo de contribuição para aposentadoria de homens e mulheres é muito usada como crítica ao feminismo e é um bom exemplo para mostrar que a igualdade não é sempre a igualdade formal que sempre é invocada. Os papéis de gênero definidos culturalmente colocam as mulheres numa situação onde elas trabalham fora, como toda a população, e também dentro de casa. O que caracteriza uma dupla ou até tripla jornada, porque o trabalho de casa se estende ao cuidado dos filhos. Enfim, a diferença do tempo de contribuição se baseia no fato de que ainda persiste essa divisão de tarefas que prejudica as mulheres e é uma tentativa de ser justo, afinal, pesquisas indicam que a jornada semanal da mulher costuma ser cinco horas a mais do que dos homens.
Não aguento quando

Há imensos desafios na luta pela igualdade, até hoje a igualação dos salários entre homens e mulheres ainda não ocorreu de fato, homossexuais e trans* não tem seus direitos civis garantidos e por mais que hoje as mulheres tenham o direito de voto e de ser votada no Brasil, o número de mulheres nos representando na política tradicional é muito inferior ao dos homens, o que demonstra que nem sempre só a igualação de direitos do modo "formal" é efetiva. Afinal, a cultura exclui a mulher do espaço público, logo da vida política. Para aumentar o número de mulheres políticas, houve a criação da cota de candidatura de mulheres de 30% para cada partido, o que funcionou parcialmente. Mas mesmo com a existência das cotas, há partidos que tentam burlar o que foi definido, adicionam nomes femininos apenas pra preencher o número de cotas e afins.
Muitas vezes a dificuldade de reconhecer o uso do princípio da isonomia dessa forma substancial está nos nossos próprios preconceitos que se baseiam na mesma cultura que discrimina os grupos que precisam dessa interpretação da igualdade. E muitos dos desafios na aplicação do princípio de forma efetiva está na nossa própria cultura excludente.

Leia também: "Desenhando: Mulheres e crianças primeiro e outros privilégios."

18 comentários:

  1. O link para a fonte da primeira imagem não está funcionando... Parabéns pelo texto!

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    1. Obrigada pelo toque e pelo elogio ao texto. :)
      Corrigi o link!

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  2. Nossa, eu li igualação algumas vezes no seu texto. Nem sabia q ela existia. Sempre falei/li igualdade, igualidade, igualitários... Fiquei consusa.
    Esse desencontro entre norma e sua função social é constante. Um bom exemplo também é o de grandes empresas q são obrigadas a contratar deficientes e em alguns casos, o quadro de funcionários/ tarefas está preenchido aí emprega-se o deficiente, mas ele não se capacita por causa de esgotamento de tarefas. Algumas situações chegam a ser humilhantes, porque isso fica visível. Triste.

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    1. Anônimo, como eu escrevi sobre essas coisas na minha monografia e pra não repetir muito as palavras e o texto ficar pobre, eu me acostumei a falar também em igualação. (Até porque os autores que eu consultei na época também curtiam esse termo).

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    2. Já vi bastante o uso de igualação. Desconheço o termo "igualidade".

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  3. Mulheres possuem jornada de trabalho 5 horas maior do que a de homens. Homens têm expectativa de vida 5 anos menor do que mulheres. Contra argumentos reacionários, daqueles que visam desqualificar o feminismo, sempre há uma estatística que lhes sirva.

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  4. Essa diferença da previdência entre homens e mulheres é uma das causas dela estar sempre com deficit.

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    1. Não é. A principal causa da previdência estar com déficit é o fato de que muita gente sonega tributos, inclusive as contribuições para a seguridade social e paga só sua previdência privada mesmo e o fato de que a população está envelhecendo.

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    2. Sem contar que a Previdência muitas vezes acaba sendo quase assistencialista em alguns benefícios bem específicos, o que ocasiona em déficit.

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  5. Sempre pensei que os um dos motivos do deficit da previdência fosse o fato de que as pessoas estão vivendo mais, má administração e porque há dinheiro sendo desviado sempre. Nunca imaginei que a culpa de tudo era dessas malditas mulheres que querem uma compensação por trabalhar bem mais horas que os homens!

    É cada uma, gente.

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  6. Ótimo texto. É muito difícil fazer reaças compreenderem que Igualdade prevista na lei não é simplesmente fingir que todos são iguais, tem as mesmas oportunidades e que enfrentam os mesmo obstáculos, mas sim identificar essas desigualdades e trabalhar no sentido de superá-las. O legal é quando voc~e discute com alguém, apresenta esses argumento e a pessoa volta com 'A constituição diz que todos são iguais perante a lei''

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  7. Enfim, a diferença do tempo de contribuição se baseia no fato de que ainda persiste essa divisão de tarefas que prejudica as mulheres e é uma tentativa de ser justo, afinal, pesquisas indicam que a jornada semanal da mulher costuma ser cinco horas a mais do que dos homens

    Assino embaixo em boa parte do texto mas discordo do trecho que destaquei. Primeiro, que essa premissa é baseada numa época em que as famílias eram tradicionais, com o homem sendo o provedor da casa e a renda da mulher era um complemento. Hoje, as coisas não são mais assim. Há mães e pais solteiros, tios que criam os netos e mulheres que vivem juntas. Eu sou homem e gay. Vivo com meu parceiro e ambos temos dupla jornada. Muitos homens solteiros (com ou sem filhos), viúvos (com ou sem filhos) e até casados também têm dupla, ou como você mesmo disse, tripla jornada. Me mato em dois empregos para ter uma vida minimamente decente e ainda sou obrigado a dar conta das tarefas de casa. Deve-se levar em consideração que a expectativa de vida de um home é MENOR que a de uma mulher, o que torna essa aplicação mais injusta ainda. É por isso que concordo quando alguns escritores (inclusive feministas) criticam a insistência de cria-se privilégios às mulheres. Deve-se proteger mulheres (e homens) da violência doméstica mas sem criar privilégios para nenhum grupo. O mesmo digo sobre guarda compartilhada e a igualdade parental.

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    1. A maior parte das famílias ainda é tradicional, ou se não é, é composta por uma mãe solteira que cuida dos filhos, Washington.

      E num casal homoafetivo, provavelmente as tarefas na família serão divididas, de forma que não haverá sobrecarga em nenhum dos dois, como ocorre com as mulheres num relacionamento heterossexual. Porque não existe uma cultura afirmando que apenas uma parte daquele casal deverá ser responsável pelo cuidado da casa, dos filhos e até mesmo "se cuidar" e cuidar do companheiro, porque são essas as pressões que os padrões de gênero impõem a mulher. Ou seja, numa relação homem e mulher as relações de poder ficam óbvias e claras e devem ser combatidas.

      É claro que em casais homoafetivos há a reprodução de muito da dominação masculina, mas não acredito que seja o caso das tarefas domésticas.

      E gente, uma lei que tenta proteger um grupo de pessoas que está em desvantagem NÃO cria privilégios porque homens e mulheres não vivem numa situação de igualdade. Negros e brancos não vivem numa situação de igualdade. E quando a gente fala na criação de crimes contra a homofobia, políticas públicas pra inclusão de homossexuais e etc, a gente faz porque héteros e homossexuais também não vivem numa situação de igualdade.

      E a questão de guarda e afins tem muito a ver também com os papéis culturalmente definidos dos gêneros. As mulheres é que costumam ser as únicas responsáveis ou as principais responsáveis pela criação dos filhos. E isso é uma coisa nociva. E por isso hoje em dia muitas feministas apoiam que a licença paternidade seja estendida. Inclusive há um projeto de lei que busca isso.

      Enfim, quando você luta contra uma discriminação que ocorre de forma estrutural, se você sempre partir sempre pras exceções, você acaba mantendo o grupo de pessoas que está sempre sendo discriminado à margem da sociedade. Acaba por não proteger esse grupo.



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    2. Obrigado pela resposta.

      Thaís Campolina, você é proprietária do blog, correto? Quero deixar claro aqui que estamos do mesmo lado; sou favorável a medidas que possam proteger grupos que são vulneráveis na sociedade, como crianças, idosos, portadores de necessidades especiais, etc. Como homem homossexual, não quero leis de proteção. Quero sim os mesmos direitos que as pessoas heterossexuais possuem, sem mais nem menos. Um dos quais o direito ao casamento civil. Quanto à homofobia, simplesmente não sou coitado; se encostam a mão em mim, levam em dobro, isso eu garanto. Claro, atitudes discriminatórias baseadas na raça, sexo, sexualidade e outros preconceitos devem ser criminalizadas; e nisso concordamos. Mulheres vítimas de parceiros agressores, por exemplo, devem ser protegidas e receber toda a atenção necessária do Estado.

      Minha única discordância com o texto (não é implicância) diz respeito à aposentadoria diferenciada para mulheres e homens quanto ao tempo. Eu vejo isso até pela ótima do machismo, pois dá a entender que a mulher é frágil e menos capaz. Se há falhas quanto à questão da dupla jornada de algumas mulheres (homens que morcegam e suas esposas, parceiras ou mães ficam com todo o trabalho doméstico) é preciso que as mulheres deem um chega-prá-lá nesses folgados, ué. O que não dá é colocar mulheres e homens em grupos homogêneos e separados e dizer que está tudo justo e ok. Um homem como eu, sem filhos e com parceiro, que tem dois empregos e ainda faz as atividades domésticas é visto como alguém que pode trabalhar mais cinco anos. Já uma mulher de classe média que trabalha, tem faxineira para limpar a casa e que matricula os filhos na escola particular e em cursinhos de inglês, é encarada como uma mulher que tem dupla jornada. É o mesmo que digo a heterossexuais que são contra a adoção de crianças por LGBTs: o que vem a ser uma família? Procriar, trabalhar o dia inteiro e deixar o filho com a babá ou na creche?

      Não quero, em hipótese alguma, desmerecer o trabalho das feministas pela luta igualdade. E também quero parabenizá-la pelo blog e pretendo passar algumas vezes aqui para ler e até comentar.

      Um grande abraço e um bom fim de semana a você, Thaís.

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    3. Ah, Thais acho que deveríamos observar isso: 18,5% dos domicílios brasileiros são constituídos por casais sem filhos e as famílias nucleares tradicionais (casais com filhos) são 46,3% dos arranjos familiares. O número de lares que são chefiados por mulheres corresponde a 7,8% do total. É curioso vermos como as coisas mudaram tão rápido. Você pode ver mais em http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI6336597-EI306,00-IBGE+casais+sem+filhos+e+lares+chefiados+por+mulheres+aumentam.html

      Obrigado.

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    4. Então, Washington, eu acredito que o tempo de contribuição para a aposentadoria mudará conforme a sociedade for mudando, mas eu ainda não acho que ela mudou o suficiente. Porque querendo ou não, a maioria das pessoas que precisam desse tempo de contribuição diferenciado são mulheres. A maior parte das mulheres não é formada pelas mulheres que podem pagar uma faxineira. Acredito que as famílias héteros estão começando a dividir tarefas de fato e com a pluralidade de novas famílias surgindo e sendo aceitas juridicamente, a mudança provavelmente ocorrerá em algum tempo.

      A questão é que vários pontos que você toda no seu texto apontam que o problema não é só a lei, mas sim o capitalismo. Que coloca as pessoas para viverem para trabalhar, sem tempo para cuidar de seus filhos, limpar sua sujeira e mesmo se divertir.

      E tem outro ponto que queria colocar em debate é que cobrar que as mulheres passem a se recusar a fazer as tarefas sozinhas é cruel e é ignorar completamente as dinâmicas de opressão. Para que isso aconteça a cultura tem que mudar, a mulher tem que se empoderar e etc, sabe? Todos nós devemos entender que temos que limpar nossa própria sujeira, independente do nosso gênero. Por isso falei que a lei deve existir pra proteger os grupos vulneráveis e isso não quer dizer que o grupo é inferior, só quer dizer que a sociedade o trata como se fosse. E as consequências disso são várias: as pessoas que compõem grupos vulneráveis muitas vezes são ignoradas/invisibilizadas pela sociedade. Sua voz tem menos valor que a voz de outras pessoas. E por tudo isso a pessoa tem menos acesso a todos seus direitos, inclusive o acesso a justiça. (E a gente sabe que o próprio Estado não está preparado pra lidar com isso, porque a polícia muitas vezes humilha o homossexual que vai na delegacia denunciar uma agressão, humilha a mulher que foi estuprada, humilha a transexual que foi espancada e não só a polícia, mas muitas vezes a gente encontra pensamentos conservadores e excludentes dentro do próprio judiciário).

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    5. E tem um ponto, o Direito ainda não consegue incluir a interseccionalidade das opressões na hora de fazer a lei e aplicá-la. (Mas tenta, por isso vemos hoje a aplicação da lei maria da penha em casos que não incluem apenas vítimas mulheres). Então acaba que quando a lei divide homens e mulheres sob um viés heteronormativo, a lei não parece tão bem feita, né?


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