quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O patriarcado e a manutenção da cultura do ódio

Hoje eu quero falar de dois acontecimentos dessa última semana que me deixaram bem entristecida. Em ambos os episódios, eu senti o amargo sabor da constatação: a misoginia encontra-se tão profundamente arraigada em nossa sociedade que eu sinto, infelizmente, que o nosso ativismo está longe, bem longe de acabar.

O fato é que eu lembrei de um texto que li outro dia, que você pode encontrar aqui (em inglês), cujo título é “5 razões pelas quais a humanidade deseja desesperadamente que monstros existam”. Eu confesso que comecei a ler o texto e achei-o bem bobinho. Não sou muito afeita a fatalismos biológicos e o artigo se baseia neles para dizer que os seres humanos precisam criar monstros para fazer valer a sua própria existência. Em outras palavras, para que você se sinta melhor com as decisões altruístas que fez em sua vida, é preciso opô-las a decisões moralmente condenáveis tomadas por outras pessoas. E é preciso, também, odiar profundamente essas pessoas.

O autor segue adiante dizendo que seres humanos sentem a necessidade de acreditar que as pessoas são deliberadamente más. Que qualquer ação que o senso comum considere ruim é feita com uma risada maligna nos lábios, como quem diz “hoje, por pura maldade, eu vou fazer algo que todos reprovam”. Afinal de contas, se acreditarmos que o outro pode estar agindo de forma “errada” sem saber, estamos abrindo o precedente para o fato de que nós, também, erramos inconscientemente. Precisamos acreditar, por exemplo, que somos exímios cidadãos e cidadãs incorruptíveis, ainda que furemos fila, xinguemos muito no trânsito e bem... tem os produtos oriundos de trabalho escravo que consumimos, né?

E por quê exatamente eu estou falando desse artigo aqui? Ora, para argumentar que, embora eu não acredite que estejamos biologicamente preparados para agir pelo ódio, eu creio sim que a humanidade realmente se deixa levar pelo ódio. E vejo o patriarcado como a grande origem disso.  Afinal de contas, é a cultura patriarcal que ensina, repete e reafirma à exaustão que qualquer desvio de uma suposta conduta moralmente aceitável deve ser achincalhado, apedrejado, tratado como uma abominação e queimado em praça pública. É aí que vemos pessoas “de bem” recorrendo à barbárie total para defender o seu código de honra. É o ódio sendo pago com ódio em um ciclo que acaba por desumanizar não apenas quem agiu “errado”, mas também quem defende, a unhas e dentes, aquilo que é “certo”. A Paula já falou disso aqui .

E sim, um dos episódios é a surra que a Carminha levou do Tufão, na novela da Globo. O fato é que a Carminha é uma vilã. Seguindo a lógica exposta acima, a sociedade simplesmente vibrou com a surra que ela levou do marido. O que me deixa com a pulga atrás da orelha, afinal, o episódio em questão revela o quanto a nossa sociedade valoriza o ódio. E comportamentos de vingança. E ver a violência tomando lugar como um ato de justiça. O Tufão teria sido justo. Milhares e milhares de brasileiros fazem essa mesma “justiça”, esbofeteando esposas, surrando namoradas que traíram, ou fizeram algum “mal”. Os índices estão aí. Indianas são mortas aos montes por conta de uma única palavrinha: honra. É preciso dizer ou vocês já sacaram que a dinâmica do ódio é muito mais cruel para com as mulheres, dado o caráter misógino com que se apresenta? E que as novelas, enquanto moldura e representação da cultura brasileira, acabam por perpetuar essa dinâmica de crueldade?

Mas peraí, Flávia, você está dizendo que a Carminha, tendo enganado meio mundo e traído seu marido, estava certa? Não. O que eu estou dizendo, ou pelo menos tentando dizer, é que a sociedade acha certo o linchamento público de mulheres. A sociedade, por considerar algum comportamento errado, reage com total barbárie, dando espaço a seus instintos mais violentos, no sentido de fazer valer o seu código de honra. É disso que estou falando. É dessa naturalização da violência com altos requintes de misoginia. Afinal, as pessoas não se juntam para linchar moralmente um cara que trai a esposa. Trata-se de dois pesos e duas medidas. E nem adianta argumentar que não é assim, a traição vinda de ambos os lados é ruim e errada. Porque essa é uma visão minoritária. E não são as minorias que aumentam os índices de violência doméstica contra a mulher. Porém, as minorias podem levantar a voz, e tentar mudar um cenário que está muito, muito errado.

O outro exemplo que eu quero apresentar a vocês também me embrulha o estômago. Tava lá eu no facebook quando me deparo com uma página comemorando a atitude da Skol em retirar o patrocínio do festival em que o New Hit participaria. Como eu achei o post engajado, fui lá e curti a página. Minutos depois, para o meu horror, a página posta um slut-shaming aberto e declarado contra a mulher Pêra, que você pode conferir aqui.  A página em questão possui 314 mil seguidores. Trata-se, claramente, de um meio formador de opiniões. Eu fico apreensiva com essa onda de backlash e barbárie que recai sobre as mulheres. Sim, as mulheres-frutas, as piriguetes, as prostitutas, as trans e todas as outras mulheres que habitam esse mundo e que ousam agir diferente daquilo que se considera “correto”, não são uma categoria à parte. São mulheres. Porém, a sociedade insiste em alçá-las à categoria de monstros, abominações. Só para resguardar seu direito de apedrejar quem pensa e age diferente.

Em uma sociedade que divide as mulheres em boas x ruins, unicamente de acordo com aquilo que elas fazem com o próprio corpo, não é de se assustar que comentários como os que vos apresento abaixo tenham surgido, em consequência do simples fato de que ela se atreveu a se candidatar a alguma coisa. Como que uma vadia dessas ousa adentrar o imaculado cenário político brasileiro? Eu dividi os comentários em 3 categorias:

1. Slut-shaming:

“É só mais uma cadela querendo se eleger, mas enfim pra combinar com ladrões em brasilia agora teremos uma vadia.”

“Nossa! depois dessa eu abandonaria a política, mulherzinhas iguais a esta aí só servem pra ficar num puteiro servindo os porcos...que nojo!”

“"VOTEM NAS PUTAS , POIS VOTAR NOS FILHOS DELAS NÃO DEU CERTO...." Parece que ela levou essa frase bem a sério”

“mesmo se ela me desse o rabbo dia 6 no dia 7 eu nao votava nela kkk”

“VIROU É PUTARIA ISSO SIM. CÂMARA DE VEREADORES NÃO TEM ND A VER COM CAMERA DE TV OU D FILME PORNÔ OU DA PLAYBOY. SUA IMBECIL. VÁ VESTIR UMA ROUPA E PROCURAR UM JEITO DE ESTUDAR PRA SER ÚTIL À SOCIEDADE.”

2. Recalque misógino:

“Por favor nao votem no partido que aceitou esse tipo de pessoa. Imagina o nível dessa gente que aceita - servem pra representar quem?”

“Mulheres q não se valorizam e só lhes resta apelar para serxo a fim de conseguir algo na vida. Totalmente sem conteudo de trabalho e de v ida.”

"Uma vergonha ver que minhas avos lutaram pelo voto da mulher, e meus pais pela democracia para uma politica mais justa, e pensar que existem pessoas que sao capazes de jogar essa historia e seu voto em uma bunda! tem que ser um bando de bundao mesmo, pírcing intimo chove no brasil soque quando vierem reclamar que nada muda, que precisam de hospitais, creches, etc... diremos temos vaginas com pírcing!"

3. Manutenção da cultura do estupro:

“Ela sabe bem o que é democracia, ali naquela rabeta todo mundo tem direito de botar, ops, votar kkkkkkkkkk”

“VOU DEPOSITAR UM VOTO DE 25CM NA BUNDA DELA!!!”

Por fim, eu deixo aqui as perguntas: por que a sociedade insiste em agir assim? Por que as pessoas lançam mão de uma selvageria maior que os alvos de suas críticas, só para fazer valer a manutenção de seus valores? Por que uma mulher que resolve exercer a sua sexualidade abertamente tem que ter a sua humanidade extirpada por pessoas que se acham acima do bem e do mal? Por que as pessoas insistem em não entender que porrada não resolve nada, apenas colabora para a manutenção de um estado bruto de incivilidade? Até quando teremos que viver nessa cultura do ódio, que encontra todo apoio e respaldo no patriarcado?

4 comentários:

  1. Quando eu a vi a foto da novela das 9, já pensei em comentar o assunto do post dentro desse contexto, apesar da abrangência da postagem.
    Essa novela é muito violenta! Não vou dar uma de pseudocult e dizer que não assisto porque já assisti, sim, vários capítulos e todos me chamaram a atenção porque tem muita gritaria, muita pancadaria e muito xingamento. A violência é escancarada mesmo. Acho que o autor tem ódio das mulheres, pois protagonista e antagonista são vilãs que manipulam seus homens e são capazes até de matá-los em nome de seus objetivos individuais. Não ficou pra mim a mensagem de que mulheres podem ser fortes, ficou, pra mim, a mensagem da vilanização da mulher. Não que eu prefira as Helenas do Manoel Carlos, mas essa novela pesou a mão na barbárie, e não acho que tenha feito isso sob a forma de uma crítica social, mas sim como uma apologia à vingança e à sujeira moral. Não é à toa que o centro da novela é um lixão.

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  2. Concordo! Gostei muito!
    Perpetuar odio, vingança, violência (fisica, psicologica, ou mesmo verbal como os comentarios) entre nos seres da mesma especie, tai nossa guerra civil, todos os dias...poucos param, refletem e tentam sair deste ciclo vicioso, poucos fecham a "janela" que abre programas como esta novela, para toda a familia,e inclui ai as crianças desde q nascem, crescendo neste ambiente televisivo, bestializador e hipinotico!

    Imagino aqui comigo um mundo sem odio, sem oprimidas, sem reprimidas, sem marginalizadas, julgadas, apedrejadas, sem mulheres que, não respeitam mulheres, sem homens que, não respeitam mulheres, estas que lhes dão a vida...seja qual forem suas escolhas de vida! Como o caso da mulher pera!

    Continue, to gostando d eler...abraços

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  3. Eu queria concordar com você, mas não consigo. Cada dia que passa tenho mais convicção de que nós, mulheres, temos que aprender a nos defender fisicamente das violências. Do estupro, do femicídio, da violência doméstica - que quase sempre é física e que por vezes inclui ameaças, geralmente cumpridas, de morte. Aprender a lutar pela auto-defesa, e aprender, inclusive, a bater. Porque, do que adianta publicarmos - e eu publico e defendo isso como válido - blogs na internet, sairmos da balada e ter caras armados lá esperando por nós? Não estou dizendo que o ativismo de sofá é inválido, só que é insuficiente. A esmagadora maior parte do movimento feminista não inclui defesa física, só defesa no campo das idéias, para as mulheres. E as q aprendem a lutar, nunca passam do ponto da auto-defesa mais elementar. Acho q a gente tem q aprender a bater, a constranger fisicamente, quem nos agride com machismo. Pq estou a achar as outras vias por demais utópicas se usadas sozinhas.
    Machismo tem q ser crime, como homofobia, daí a urgência da aprovação do PLC-122. Mas de se tornar crime a efetivamente as pessoas serem punidas, há uma distância imensa - estupro é crime e o culpado quase nunca vai à cadeia. E o q vamos fazer? Deixar tudo por isso mesmo?
    Eu não pensava assim antes, mas hoje sinceramente, se um cara tentar me estuprar, e eu tiver a oportunidade de matá-lo, azar o dele. Pq, só porque eu sei me defender, e impedir q ele arruine a minha vida, isso não quer dizer q ele não vá tentar destruir a de outras. Os homens precisam entender de uma vez por todas que também somos fortes. Levantamos peso a nível olímpico, mas só o que notam é os pêlos sob o braço, não é? Talvez se nós retirarmos deles um dos pilares mais fundamentais sobre os quais eles erguem a argumentação da validade da nossa opressão - o sermos "fracas" - isso seja um golpe mto decisivo na nossa subordinação.
    E mais uma coisa, uma autora de quem eu gosto, e que combate os preconceitos nas suas mais variadas formas, a JK Rowling, tem uma frase interessante: matar não é tão fácil quanto supõe os inocentes. E é verdade mesmo. Por isso eu acho q a gente tem q aprender a se defender e a bater. Porque, talvez a gente não chegue a bater mesmo, fomos aculturadas mto fortemente para NUNCA usarmos a força - nem sequer elevarmos a voz. Mas só sabermos como fazer já nos deixa mais confiantes.
    Eu não vou responder a cantadas na rua antes de ter certeza de que não vou apanhar se o cara insitir em me oprimir. Concordo q cantadas estão erradas, mas como eu vou dar resposta a elas se responder a cantadas ameaça a minhas segurança física?
    Concordo q vivemos em uma cultura de estupro, mas saber disso e combater isso no nível da cultura não é o bastante. É preciso conseguir competir pela minha integridade contra alguém q tente me estuprar.
    Realmente a violência doméstica é mto disseminada, mas além d combater o componente cultural disso, acho importante q a gente saiba se defender e até punir quem violenta mulheres. Já q está claro q o Estado não vai fazer isso por nós. E, enquanto o disputamos, podemos mto bem ir efetivamente construindo uma realidade mais segura para nós através da nossa própria resistência q não passe pelas formas institucionalizadas pelo governo.
    Mto pertinente o seu texto. Do meu ponto de vista, o monstro é o machista e a violência contra ele, principalmente se a integridade da mulher depender disso, está legitimada.

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