quarta-feira, 16 de maio de 2012

Guestpost: "A arma mais poderosa na mão do opressor é a mente dos oprimidos." (Steve Biko)


Nesse mês em que comemoramos os 124 anos da tardia abolição da escravatura, publicamos com imensa alegria mais um texto tratando da questão racial. Dessa vez escrito pela Cíntia Farias, uma querida amiga e leitora do Ativismo de Sofá. O assunto são as cotas raciais, aprovadas em recente julgamento do STF. A quem interessar, o julgamento pode ser visto na íntegra aqui.

"A arma mais poderosa na mão do opressor é a mente dos oprimidos." (Steve Biko)

Dia desses eu estava almoçando na casa de familiares quando alguém comentou ter visto uma pesquisa sobre a maioria da população carcerária no Brasil ser formada de negros. Logo destaquei que aquela maioria não se repetia nas universidades. E todos concordaram que aquela era uma constatação escandalosa. Muito segura, eu ironizei: "E depois dizem que as cotas raciais nas universidades  são um absurdo!", e, para o meu espanto, ouvi a seguinte resposta: "Mas de fato é! Isso é atestar que o negro não tem capacidade de passar no vestibular por seus próprios méritos... Esse é o verdadeiro racismo!", disse minha tia, indignada. E ela prosseguiu: "Quando eu fiz faculdade eu passei sem precisar de nada disso.". "E quantos negros tinham por lá?" eu perguntei. "Só eu." foi a resposta, que, por mais esperada que fosse, não deixava de me causar perplexidade.
  
Ministro Fux, durante o julgamento da ADPF 186
Confrontar o dado de que apenas 1% do alunado de uma universidade é formado por negros, como era o caso da UnB até pouco tempo atrás, e não ser conduzido à imediata conclusão de que algo está muito errado mostra que a exclusão produzida pelo racismo no Brasil atua tanto objetiva quanto subjetivamente. Se por um lado somos alijados das salas de aula do ensino superior, dos cargos públicos de destaque, das grandes corporações, dos anúncios de TV e assim por diante, de outro, somos levados a uma grave falha de percepção da estrutura excludente em que estamos inseridos. É como se nos dissessem o tempo inteiro "tudo está em seu devido lugar".

Sempre que se fala em cotas raciais, somos expostos aos inacreditáveis argumentos de cunho genético - vejam que, geneticamente falando, Neguinho da Beija-Flor é 70% eurodescendente Devíamos chamá-lo de "Europeuzinho da Beija-Flor", por mais adequado, não acham? Também não se pode ignorar a clássica afirmação de que "somos todos mestiços" afinal esta é a terra da miscigenação. Portanto, se todos temos a mesma origem, não há lugar para um sistema que promova um grupo em detrimento de outros, certo?  Errado.
Atriz na novela "Duas Caras" da Rede
Globo submetendo-se à tortura ideológica
Se biologicamente o conceito de raça não encontra respaldo, é socialmente que ele mostra toda a sua força.  A política de cotas não cria uma situação de segregação racial, porque esta já está cansada de existir.

Também muito comum é condenar a reserva de vagas nas universidades pelo critério racial ao fundamento de que ela apenas mascara "o problema real", qual seja, a falta de investimento na educação básica. O que os defensores deste pensamento talvez ignorem é que 1) não há apenas um "problema real";  2) ações afirmativas são apenas uma das diversas políticas que podem (e devem) ser implementadas pelo Estado. Elas são, por definição, medidas temporárias direcionadas a grupos específicos de indivíduos, com o fito de eliminar situações de desigualdade construídas historicamente. Portanto, as cotas raciais em nada prejudicam ou afastam o dever do Estado com a educação, ao contrário, prestigiam-no.

Assim é que o discurso acerca de um mundo meritocrático em que raças não existem ou não fazem diferença serve somente ao fortalecimento da estrutura de desigualdade. Fazer coro com essas afirmações significa, na prática, aliar-se à hegemonia racista.

*Escrito por Cintia Farias, 25 anos, mulher, negra, nordestina e atenta.


2 comentários:

  1. A aprovação das cotas raciais é apenas um inicio para mudanças. Contudo, sou a favor de cotas sociais.No fundo o que precisamos é de melhoria na educação do país.Não somente a educação da escola, mas da propria mentalidade das pessoas que são preconceituosas. Ninguém é melhor do que ninguem pela cor da pele.Mas alguém se torna melhor que o outro quando aprende a respeitar as pessoas.

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  2. Nossa, esse texto diz tudo, muito bom! Muito bem escrito e precisa ser divulgado. A descrição da autora ironicamente é tudo que representa falta de capacidade na mente dos preconceituosos. É pra jogar na cara, mesmo!

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